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A “Rua do Peixe Frito” em Disco e ao Vivo (por António Pires)
Há algumas semanas, numa farmácia da Cruz Quebrada, estava na galhofa com o rapaz que me atendia quando, de repente, ele disse: “Pois; é que o senhor já tem uma certa idade”. Nunca tal me tinham dito… mas é a mais pura das verdades. Sou de uma geração que teve como lema de vida “Somos um bando de putos e nunca iremos crescer” (Sex Pistols dixit) mas sim, chega-se a uma certa idade e temos que finalmente admitir essa realidade. E uma realidade que tem algumas coisas boas. Por um lado, em festivais com vários palcos distantes uns dos outros começamos por estudar bem o programa de concertos e a optar por ficar, sossegadinhos, apenas num deles. Por outro, enquanto jornalista de música já não me chateio tanto se os meus preconceitos acerca de certas bandas ou artistas caírem com estrondo perante algum dado diferente ou alguma nova evidência (por exemplo, há coisa de um ano dei por mim a gostar muito de uma nova canção dos Quinta do Bill).
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Este intróito serve para se perceber a decisão que me levou a assistir a uma das melhores noites de concertos só com grupos portugueses, e foram apenas três, que vivi nos últimos anos. Na primeira noite da recente Festa d’O Avante, pelas sete da tarde, fui ter com os meus amigos Marafona ao Palco Raízes e por lá fiquei. Comi umas tripas no restaurante do Porto ali mesmo ao lado e ainda pensei dar um salto ao outro lado da Atalaia ver o Edu Miranda (no 1º de Maio), mas a preguiça, a tal certa idade e algum enjoo motivado pelo excesso de cominhos mantiveram-me por ali. Em boa hora! Os primeiros a tocar foram os alentejanos Magano (muito melhores ao vivo do que eu julgava; preconceito superado…) e os últimos foram os Marafona (que na sua música vão de norte a sul do país e, já agora, têm um novo single fabuloso!). Pelo meio, e é isso que nos interessa aqui, tocaram os algarvios Marenostrum. E sim, nesta noite todas as bandas que tocaram no mesmo palco têm nomes começados por “ma”.
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Já não assistia a um espectáculo dos Marenostrum há muito muito tempo (Med de Loulé? Sons do Atlântico?...) e estava curiosíssimo com o que dali viria. Já sabia que tinham um disco novo e, disse-me o Artur Serra (dos Marafona), que o João Frade tinha falhado um concerto da sua “patroa” habitual, Mariza, para ir tocar com os Marenostrum, primeiro grupo que deu a ouvir ao mundo o seu acordeão… E que grandíssimo concerto que foi! Primeiro, pela qualidade, versatilidade e inventividade dos músicos que agora formam a banda. Zé Francisco, com o carisma da sua voz moldada pelo sol e pelo sal da maresia algarvia (e de alguns mestres como Fausto Bordalo Dias, José Afonso ou Sérgio… Mestre), a sua guitarra e o seu bandolim que também pode soar a bouzouki ou a oud. O já referido João Frade, cujo instrumento navega entre a música tradicional do Algarve, o free-jazz, o Kimmo Pohjonen mais punk, a musette mais doce ou o Astor Piazzolla mais “Liber…”. O genial soprador de saxofone barítono, flauta transversal e “tin whistles” irlandesas Lino Guerreiro (que, em determinado momento desse concerto, caiu de joelhos no palco sem nunca deixar de tocar porque a alça do instrumento se desprendeu; qual pequeno Cervi lutando sozinho na linha lateral contra cinco corpulentos alemães). E uma secção rítmica poderosíssima formada por João Vieira (Janaca) na bateria e percussões e por Paulo Machado no baixo eléctrico (e também teclados e acordeão). Sim os Marenostrum estão uma super-banda.
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Em concerto, mas também no novo disco que já ouvi – o até agora apenas referido no título “Rua do Peixe Frito” -, os Marenostrum continuam também a mostrar que são uns eternos viajantes entre muitas músicas e muitos lugares do mundo. N’O Avante recuperaram alguns temas dos seus álbuns anteriores - “Estoy em Santa” (2001), “Almadrava” (2005) e “Arraia Miúda” (2009) – onde, ao lado ou por dentro de corridinhos, bailes mandados, cantigas ao desafio e outras cenas algarvias tanto podia entrar o ska como o fado, o rock progressivo – desta vez, ao vivo, a roçar o melhor prog-metal – e outos géneros que ainda agora cultivam: a música dos ciganos dos Balcãs e o klezmer dos judeus, a música árabe e do nosso Al-Andalus comum, a música dita celta e muitos outros estilos que, nos Marenostrum, se mostram sempre unidos e coesos, irmãos ou primos uns dos outros. Boa parte do espectáculo teve, obviamente, como principal foco o novo CD. Dele ouvimos (ao vivo e em disco) dois opulentos instrumentais – uma versão de “Blue Rondo a la Turk”, do pianista Dave Brubeck (em que eles se atiram a este clássico do jazz norte-americano como se fossem uma Penguin Cafe Orchestra a tocar o “Music For a Found Harmonium” em darabukas e sopros), e “”Mandja”, uma criação colectiva dos Marenostrum (valsa acelerada próxima das criações de Yann Tiersen) .
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E ainda muitas das suas canções, nomeadamente “Esteiro Novo” e “Mar das Éguas” (um díptico que, num ambiente próximo das criações mais africanas de José Afonso, fala dos pescadores, contrabandistas e migrantes algarvios), “Rua do Peixe Frito” (primeiro single e fortíssima canção em que sonoridades magrebinas são puxadas por um saxofone à Morphine, um acordeão bailarino e uma secção rítmica possuída pelo Demo), ”Meninos de Momprolé” (uma morna belíssima), “Náufrago (Mar Revolto)” (“power-ballad” com ecos de “airs” irlandeses em memória daqueles que o Mar exige para si), “Fado Corridinho” (um divertimento que é levado muito a sério), “Corridinho Aluljé” (em que corridinhios e bailes mandados lá dos suis, e guiados pelo “flow” trad-rap da voz de Zé Francisco termina… numa chula lá dos nortes) , “Sul” (morna-fado-milonga-choro que, de súbito, se tornam num imenso corridinho) e “Baixa-Mar” (entre o tango e o jazz com coro feminino e o nosso cantor a dar uma, e bem, de Tom Waits/Melingo/Zeca Medeiros).
E depois; depois há as letras. Ninguém escreve como José Francisco, autor de palavras que celebram o Algarve e as suas gentes, as suas viagens e os seus ofícios, a sua comida e a sua cultura, a sua maneira de falar e as expressões que a esmagadora maioria de quem não é algarvio não consegue compreender – mas que raio significam “pelengana”, “franquinhal”, “arrabanhita”, “lavaje”, “arraboleta” ou “morjaneiro”? E não, aqui, “charro” não significa broca ou ganza mas chicharro mesmo. Mas também celebra as comunidades africanas de língua portuguesa e suas parentes em Lisboa (“Meninos de Momprolé”, em que homenageia especialmente B.Leza, Cesária Évora e Tito Paris), outros lugares e outros mundos.
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Assumidamente algarvio, mas de braços abertos ao Mundo, “Rua do Peixe Frito”, dos Marenostrum, é um disco enorme (e dele já nasceu um fabuloso concerto). Como grita o já citado Artur Serra no final duma canção: Tenho dito!