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Vêm aí “Todas as Sombras”, o Álbum de Estreia

Em finais de Fevereiro, o mundo recordou o dia em que, há 75 anos, se abriram as portas que revelaram o horror que foi Auschwitz. Sim, passaram-se já três gerações, mas os fascismos e os fascistas– manifestem-se eles de que forma for – continuam a nascer por todo o lado e a toda a hora. Nos últimos meses, e só para nos referirmos ao nosso país, o fascismo, o racismo, a xenofobia e muitas outras formas de intolerância que geralmente só habitavam nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais online, tornaram-se mais descaradas, mais assumidas e ainda mais perigosas

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E é por isso que é cada vez mais urgente, importante e necessário que, em contra-corrente, nasça música que os conteste, aos fascismos e aos fascistas todos, fazendo da cantiga uma arma e das guitarras (e outros instrumentos) máquinas que matam fascistas. E os fascistas sabem-no bem: o hijo de puta que torturou (e depois matou) Victor Jara partiu-lhe as mãos para que “nem no inferno voltasse a tocar”.

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Inventada pelo cantor folk de intervenção norte-americano Woody Guthrie, que a colou em várias das suas guitarras há cerca de 80 anos, a frase “This Machine Kills Fascists” foi depois glosada em muitas canções – como a homónima dos Anti-Flag --, T-shirts, capas de discos, obras de arte, livros, banda-desenhada, etc…

E, claro está, passou a estar presente em muitos instrumentos musicais de anti-fascistas de todo o mundo: dos Rage Against The Machine a Billy Bragg, de Donovan a Johnny Cash e The Last Internationale, passando pela concertina/gaita de Marcus Veiga (Scúru Fitchádu). Porque, como escreve Tiago de Lemos Peixoto e cantam os el Sur, “Como se sombras antigas se esfumassem de repente e não fosse eterna a Serpente”. Porque, para quem pensa que a democracia deve acarinhar no seu seio os fascistas porque até foram eleitos democraticamente, só temos isto para lhe dizer: vá lá ler, ou reler, O Paradoxo da Tolerância, de Karl Popper.

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E, já agora, ouvir com muita atenção o álbum de estreia dos el Sur, “Todas as Sombras”. Grupo de Lisboa formado por Rui Galveias na guitarra eléctrica (e cordofones tradicionais), Joana Manuel na voz, Rui Alves na bateria, Tiago Néo no baixo e João Cardoso nos sintetizadores, os el Sur nasceram há cerca de cinco anos, irmanados por uma ideia: homenagear a grande música de intervenção da América Latina cantada em espanhol e assinada por nomes como Violeta Parra. Não por acaso, o seu primeiro grande concerto foi uma homenagem a esta cantautora chilena em que tiveram como convidados Vitorino, Helder Moutinho, Joana Guerra, Pedro Sotiry, Florent Kouzmienko e Fabiola Moroni -, Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui ou o já referido Victor Jara.

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Mas, com o tempo, os el Sur começaram a juntar mais ingredientes na sua música. Às canções de luta e resistência juntaram poemas de amor (alguns deles também canções desesperadas, para citar Pablo Neruda) e outros poetas e compositores, portugueses como José Saramago, Eugénio de Andrade (que já era o autor de “Último Poema”, single que apresentou o grupo, e aqui assina “Lume”) ou Tiago de Lemos Peixoto; brasileiros como Lupicínio Rodrigues ou o colectivo de autores do samba-enredo vencedor do Carnaval do Rio de Janeiro 2019 - “História para Ninar Gente Grande", que homenageia negros, índios e pobres que foram omitidos nas páginas dos livros de História – ; e um mexicano, José Emilio Pacheco (autor do poema “Alta Traición”, no qual os el Sur enxertaram a frase “todas as sombras…”).

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Juntando a isto tudo as raízes musicais e performativas de cada membro dos el Sur – os blues, o prog-rock, o punk, o jazz, as músicas tradicionais e dos grandes cantautores portugueses e brasileiros -, aquilo que esta banda faz muitas vezes é uma “colagem” de várias camadas de criação sonora em que cada instrumento parece vir de géneros, lugares e tempos musicais diferentes. Uma espécie de “wall of sound” inventado por um Phil Spector ainda mais louco e obsessivo, construído com tijolos de cores diferentes, mas que acabam por formar uma parede harmoniosa, coerente, cinética e funcional. Um muro, ou uma tela, em que os el Sur – sendo eles os autores das músicas originais ou nas versões – criam uma banda-sonora (só) deles para cada um dos poemas, cada um dos seus versos, para cada uma das suas palavras.

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Entre canções abertamente de protesto e intervenção e canções que falam de vários tipos de amor, permitam-me destacar apenas alguns exemplos do que para trás ficou escrito: “Recorto a Minha Sombra” (com poema de José Saramago sobre o Fado Alberto, tradicional de Miguel Ramos) ouvimos fado, sim, mas também… tango, noise-rock, ragtime de saloon; “El Pueblo” (com poema de Pablo Neruda e música de Violeta Parra) é um fabuloso hino anti-fascista que ainda há poucos meses foi recuperada por manifestantes chilenos que aqui tem teclados prog da melhor safra (Robert Wyatt, sim?) e… adufes da Beira Baixa); “Valsita Cruel” (poema de Tiago Lemos Peixoto, com música dos el Sur) é bossa nova, é milonga, é morna… tudo junto noutra canção de ntervenção que fala de várias formas de ditadura  no Brasil, da luta dos sem-terra e de todos os outros sem-outras coisas quaisquer.

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“Todas as Sombras”, dos el Sur, é um álbum raro no panorama da actual música portuguesa. E, fazendo agora uma “colagem” com palavras já anteriormente usadas, um álbum urgente, importante e necessário.

 

António Pires (jornalista)

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